quinta-feira, 21 de março de 2019

Dia Mundial da Poesia

ARTE DE GRITAR

Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.


Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.


Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar


amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.


Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter


como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.


E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.


E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.


(Os poetas entendem-me estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)


Gaveta do fundo
A. M. Pires Cabral
Edição Tinta da China

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