domingo, 17 de abril de 2016

O atraso do campo segundo Gonçalo M. Tavares

- Gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força.
- Gosta?
- Sim, agrada-me. Dá-me prazer. Uma pessoa vai a passar e eu chamo-a: ó desculpe, Vossa Excelência?!
- E ele - a Excelência - vai?
- Sim. Quem não gosta de ser chamado à distância por Vossa Excelência? Apanho sempre as pessoas pela vaidade ... é a melhor forma.
(...)
- Ela aproxima-se e pergunta-me: o que pretende? E eu, com toda a educação e não querendo esconder nada, digo: gostava de bater com certa força na cabeça de Vossa Excelência. É isto que eu digo, apenas. Nem mais uma palavra.
(...)
- E o que acontece?
- Bem, a princípio instala-se um silêncio, por vezes constrangedor.
(...)
- O que acontece é isto - pode não acreditar, realmente é espantoso, mas eu digo, sem preâmbulos nem prefácios longos, eu digo apenas: gostava de bater com força na cabeça de Vossa Excelência, e eles, sem excepção, passado esse momento de silêncio, respondem: ok.
(...)
- Sim, revela um companheirismo que só existe nas cidades muito grandes.
- Ah é?
- Sim. Uma vez tentei fazer isto no campo.
(...)
- O que acontece depois é que, quando ele chega ao pé de mim, lá está ... eu digo aquilo, de uma forma simples, tranquila, com um tom de voz neutro, eu digo: gosto muito de bater na cabeça das pessoas com uma certa força. E depois, sem pausas, proponho: gostava de bater na sua cabeça com uma certa força. É possível?
E o camponês, o rude camponês, fica em silêncio durante segundos, exactamente como os da cidade, e depois desse silêncio de reflexão responde (veja bem!): NÃO.
- Não?
- Exacto. NÃO. Não quer que eu lhe bata com certa força na cabeça.
- Isso é incrível.
- É. Por isso é que eu gosto mais de viver na cidade.
- Os camponeses são mais fechados, não é?
- Sim, muito mais.

Gonçalo M. Tavares, O torcicologologista, excelência ( leiam o livro, é uma delícia, digo eu)

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