domingo, 26 de janeiro de 2014

Jorge de Sena

Cantar do Amigo Perfeito



Passado o mar, passado o mundo, em longes praias, 

de areia e ténues vagas, como esta 
em que haverá de nossos passos a memória 
embora soterrada pela areia nova, 
e em que sobre as muralhas quanta sombra 
na pedra carcomida guarda que passámos, 
em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas esta, ó meu amigo? 

Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos 
da alheia juventude, impudica ou severa, 
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se, 
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas; 
e o meu e o teu olhar guiando-se leais, 
de nós um para o outro conquistando 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas, diz, ó meu amigo? 

Também aqui relembro as ruas tenebrosas, 
de vulto em vulto percorridas, lado a lado, 
numa nudez sem espírito, confiança 
tranquila e áspera, animal e tácita, 
já menos que amizade, mas diversa 
da suspeição do amor, tão cauta e delicada 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda as recordas, diz, ó meu amigo? 

Também aqui, sorrindo em branda mágoa, 
desfiámos, sem palavras castamente cruas, 
não já sequer os íntimos segredos 
que o próprio amor, porque ama, não confessa, 
nem a vaidade humana dos sentidos, mas 
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas 
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
ainda recordas, diz, ó amigo? 


Partiste e foi contigo a juventude. 
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo, 
e o terror de não ser minha estátua jacente 
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância 
desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! - 
que só do amor ou só da terra haja saudade. 
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes, 
tu sabes que a levaste, ó meu amigo? 

Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

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